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DISCIPLINA COSMOLOGIA – DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA UFJF

                PROFESSOR LUCIANO CALDAS CAMERINO

 

              Apresento aqui o programa e o material básico da disciplina Cosmologia, que  tem como objetivo apresentar as principais concepções que a cultura oriental e ocidental produziu a respeito do Universo: sua origem, natureza, funcionamento e sentido, desde algumas representações míticas, passando pela filosofia grega e medieval, até alcançar a cosmologia moderna, baseada na ciência, e tratando finalmente de alguns temas da cosmologia contemporânea. Essa disciplina integra o currículo das disciplinas eletivas, do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora.                

                Os temas do curso, aqui apresentados  e que serão disponibilizados virtualmente, são relacionados abaixo, na ordem em que são trabalhados em sala de aula. Cada tema contém texto, ou textos, imagens e diagramas e bustos ou pinturas que representam os grandes filósofos e cientistas que marcaram a trajetória do pensamento cosmológico. Esses temas são:

      1-     Introdução – Ver apresentação do blog

      2-    Cosmologias Antigas

2.1- Cosmologia do Hinduísmo

2.2-  Cosmologia da Babilônia e do Egito

2.3-   Cosmologia dos Povos Tupi-Guaranis

      3-    Cosmologia Grega I

3.1-    Pitágoras

3.2-    Heráclito

      4-         Cosmologia Grega II

4.1-    Platão

4.2-    Aristóteles

4.3-     Eudoxo de Cnido

      5-      O Cosmocentrismo Grego

5.1-      A Pólis e a Cosmologia

5.2-      Medicina e Cosmologia na Paideia

5.3-       Medicina Grega e Cosmologia

5.4-       Ética e Cosmologia

      6-       A Escola de Alexandria (Primórdios de uma investigação científica do cosmos)

6.1        Aristarco de Samos      

6.2-    Eratóstenes

6.3-      Cláudio Ptolomeu

       7-        Cosmologia Cristã da Idade Média           

       7.1-   Cosmologia Islâmica

7.2-      Cosmologia de Dante Alighieri

7.3-   Modelo Cosmológico Medieval

7.4-    Harmonia e Proporção no Universo

      8-      Cosmologia Científica Moderna

8.1-      Nicolau Copérnico

8.2-      Tycho Brahe

8.3-      Johannes Kepler

8.4-      Galileu Galilei

8.5-      Isaac Newton

      9-      Ciência, Tecnologia e o Mundo Moderno (Cosmologia e Navegações)

9.1-      Ciência, Técnica e Grandes Navegações

9.2-    Astrolábio, Sextante, Balestilha

10-   Cosmologia Contemporânea

10.1-O que é Cosmologia

10.2-O Universo de Einstein

10.3-Do Big Bang ao Universo Eterno

10.4-O Desafio do Pós-Teísmo

10.5-Teoria do Universo Oscilante

      11.   Cosmologia e Filósofos Modernos

11.1- Filósofos modernos e Cosmologia

11.2- Nietzsche e Cosmologia


2. COSMOLOGIAS ANTIGAS

    2.1 A Cosmologia Hinduísta
    Afora algumas exceções, não existem historiografias no sul da Ásia nos mesmos moldes daquelas desenvolvidas pelas tradições gregas, árabes e europeias. Essa ausência de historiografia tornou difícil a datação dos textos sânscritos e reforçou a tendência de se conceber a Índia como uma realidade
a-histórica, mítica e irracional em comparação com o Ocidente – visto como histórico, científico e racional. A concepção da Índia como “alteridade” irracional do Ocidente determinou a ocultação de um forte elemento “racionalista” na cultura hindu (a ciência do ritual, a gramática, a arquitetura, a lógica e a
filosofia) e a minimização da dimensão mítica do pensamento ocidental. No entanto, é fato que o hinduísmo produziu narrativas míticas elaboradas, nas quais não existe uma distinção clara entre “história”, “hagiografia” e “mitologia.
    Os Puranas, “estórias de um passado remoto”, constituem um corpus complexo de narrativas que contem genealogias de deuses e de reis, cosmologias, códigos legais, e descrições de rituais e peregrinações a lugares sagrados. Embora nenhum texto siga rigorosamente este padrão, os Puranas
abarcam, tradicionalmente cinco tópicos:
 a criação ou manifestação do universo;
 a destruição e a re-criação do universo;
 genealogias de deuses e sábios;
 os reinados dos quatorze Manus, progenitores mitológicos da humanidade;
 a história das dinastias solar e lunar, às quais todos os reis remontam suas origens.
    Conforme se pode constatar: nas cosmologias hinduístas, não aparece o conceito de Criação, que é central na tradição ocidental, e que provém do judaismo e posteriormente foi assumido pelo Cristianismo. O Universo é concebido como cíclico, estando sujeito à períodos de manifestação e de dissolução. Também se pode verificar que há uma espécie de justificação divina do poder dos reis, tal como existiu no Ocidente, antes das modernas teorias do contratualismo, que negam a origem divina do poder real.
    O cosmos em sua totalidade é habitado por várias espécies de seres; humanos, animais, plantas, deuses, cobras, ninfas, músicos celestiais, espíritos errantes e muitos outros. Dependendo das suas próprias ações (karma), os diversos seres podem reencarnar em qualquer um desses reinos. A vida em qualquer um desses reinos tem, é claro, um caráter de impermanência e, portanto, um determinado ente está fadado a renascer num outro reino. Nesse contexto, nem o inferno nem o céu são entidades permanentes.
    Paralelamente a uma concepção complexa sobre a estrutura do cosmos, os Puranas possuem também uma concepção complexa sobre o tempo. O universo atravessa um ciclo de quatro eras ou yugas: a era da perfeição, satya yuga, que dura 1.728.000 anos humanos; o treta yuga, de 1.296.000 anos; o
dvapara yuga, de 864.000 anos; e a era das trevas, kali yuga, de 432.000 anos. Isso perfaz um total de 4.320.000 anos, período durante o qual o mundo se desloca, gradualmente, de um estado de perfeição para um estado de degeneração da moral, isto é, para um estado no qual o dharma¹ é esquecido.
O período total de quatro yugas é chamado de manvantara, idade ou tempo de vida de um Manu. Depois de mil manvantaras, que corresponde a um dia de Brahma², o universo será destruído pelo fogo ou pela água, dando início a uma noite de Brahma que se estenderá pelo mesmo período (isto é, mil
manvantaras), após o que o processo se reinicia por toda a eternidade. Não existe fim para este processo; nem outro propósito senão a diversão do Senhor.
    Pode-se também verificar que a noção de Historicidade, tão essencial ao pensamento ocidental, principalmente a partir de meados da filosofia moderna, praticamente não tem peso na reflexão hinduísta aqui apresentada. A vida humana e seus acontecimentos não são relevantes no drama universal; este, por sua vez, não caminha para um estado de maior perfeição ou para uma situação de utopia: tudo se desenvolve e posteriormente decresce. Por isso a concepção de iluminação é essencialmente solitária, não envolvendo o compromisso de transformação social.

¹ Esse termo é o equivalente semântico em sânscrito mais próximo da palavra “religião”. Sua
conotação, entretanto é mais ampla e incorpora as noções de “verdade”, “dever”, “ética”, “lei” e
até mesmo “leis naturais”. O dharma é a força que preserva e mantém a sociedade e o
cosmos.
² Brahma é o primeiro Deus do Trimurti, a trindade do Hinduísmo (os outros deuses são Vishnu
e Shiva). Brahma é considerado, pelos hindus, a representação da força criadora ativa no
universo.
Fonte: FLOOD, GAVIN. Uma Introdução ao Hinduísmo: Editora UFJF, 2014.
P. 143 – 144, 151-155.


    O número de universos parece ser incontável, imensurável ou incalculável, de acordo com a literatura purânica: Mesmo que num período de tempo eu possa contar todos os átomos do universo, eu não poderia contar todas as opulências que manifesto em meio aos inúmeros universos. (Bhagavata Purana 11.16.39). Além disso, escritores como Carl Sagan e Fritjof Capra reconheceram as similaridades entre as mais recentes descobertas científicas sobre a “idade do universo” e o conceito hindu de “dia e noite de Brahma”, que é muito mais próximo da atual idade do universo do que outras narrativas sobre a criação. Os dias e as noites de Brahma representam a visão de um universo criado pelo divino que está em permanente ciclo de vida, morte e renascimento. De acordo com Sagan: “O dharma dos hindus é o única das grandes religiões que se dedica à ideia de que o cosmo atravessa um infinito número de mortes e renascimentos. É o único dharma em que a linha do tempo corresponde à cosmologia científica
moderna. Os seus ciclos vão dos nossos dias e noites comuns, até o dia e a noite de um Brahma, com duração de 8.64 bilhões de anos. Mais longo que a idade da Terra ou do Sol, e cerca de metade do tempo passado desde o Big Bang.




    SAGAN, CARL. Cosmos: Ballantine Books, 1985. P.258 - Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Hindu_cosmology
    Shiva representa o aspecto transformador do Universo. Tem nas mãos um tambor, que marca o ritmo dos ciclos cósmicos. Também é representado pela figura de um dançarino, que simboliza a eterna impermanência e mudança da realidade.

    Existiram, na Índia,   observatórios gigantescos, construídos antes dos modernos telescópios e aparelhos científicos. Trata-se dos observatórios denominados JANTAR MANTAR, que significa aparelhos de cálculo. Eram gigantescos relógios de sol, ou outros aparelhos, alguns dos quais com mais de 20 metros de altura, que permitiam uma grande precisão na observação dos fenômenos astronômicos. O relógio de sol ali existente, por exemplo, tinha uma precisão de 2 segundos.
    Na época em que foram construídos, no início do século XVIII, já existiam telescópios bem desenvolvidos na Europa, mas tal fato era desconhecido pelos construtores dessas gigantescas estruturas. É interessante destacar que essas construções eram destinadas principalmente à investigações astrológicas, tendo sido encontradas as marcações dos doze signos. Também se especula que tais estruturas foram feitas segundo a astronomia islâmica, ainda seguidora do modelo de Ptolomeu. Dessa forma, esses observatórios atenderiam aos objetivos a que se propunham, que não são os mesmos da moderna ciência cosmológica.
    As imagens desse observatório podem ser encontradas na internet. Apresento abaixo duas dessas estruturas. 








    2.2 COSMOLOGIA DA BABILÔNIA E DO EGITO

   A Mesopotâmia não foi um império ou um país. Ao invés disso, a Mesopotâmia era uma área geográfica na qual pessoas, com as mais variadas origens, se instalaram e, eventualmente, organizaram estados-cidades, que mais tarde se transformaram em poderosos impérios. Vários destes estados-cidades
primordiais mesopotâmicos foram fundados muito antes que as mais antigas comunidades políticas egípcias. Os impérios formados pelos sumérios, babilônios, caldeus e assírios se estenderam por toda a região conhecida como Mesopotâmia.
   Há quatro mil anos os babilônios eram bastante versados em astronomia. A astronomia babilônica é notada pelos seus registros, contínuos e detalhados, de fenômenos astronômicos tais como eclipses, posições dos planetas e nascimento e pôr da Lua. Alguns destes registros foram feitos em 800 a.C. e
são os mais velhos documentos científicos existentes. O propósito desta atividade era claramente astrológico com o objetivo de predizer a prosperidade do país assim como a do seu rei. A crença na Astrologia era comum na Antiguidade, e traduzia uma convicção antiga: a de que a ordem universal era a mesma, nos céus ou na terra, tudo entrelaçando em uma mesma organização. Assim, acontecimentos celestes, terrestres e históricos eram vistos como expressões de uma mesma lei.
   Além de registros os astrônomos babilônios também desenvolveram várias ferramentas aritméticas que, aplicadas às suas tabelas de dados, os permitiam prever os movimentos aparentes da Lua, das estrelas, dos planetas e do Sol no céu. Eles podiam até mesmo prever eclipses. Entretanto, embora
sua preservação de registros fosse uma tecnologia nova para a época e seu sistema de nomes estelares e sistema de medição fosse passado para civilizações posteriores, os babilônios nunca desenvolveram um modelo cosmológico para nele interpretar suas observações. Os gregos, posteriormente, de posse desses registros, é que buscaram elaborar um sistema teórico onde essas observações se inserissem.
   Apesar disso, a cosmologia na Mesopotâmia era muito mais sofisticada do que, por exemplo, a do Egito. Os babilônios acreditavam em um universo de seis níveis com três firmamentos e três terras: dois firmamentos acima do céu, o firmamento das estrelas, a terra, o submundo do Apsu, e o submundo dos
mortos. A Terra era um enorme plano que tinha uma forma circular. Ela repousava sobre uma câmara de água, um rio que a circunda totalmente. Em volta da Terra havia uma parede que sustentava uma cúpula onde todos os corpos celestes estavam localizados. É possível constatar, na cosmologia babilônia, a presença do firmamento das estrelas, que contém aquelas estrelas que aparentemente não se movem, em função de estarem muito distantes de nós. Interessante também verificar que o mundo dos mortos igualmente fazia parte da cosmologia, tal como será, depois, na cosmologia medieval. Da mesma forma o universo era espacialmente hierárquico e finito, com os mortos residindo na parte inferior desse conjunto.
Fonte: http://www.fisica.net/giovane/astro/Modulo1/cosmologia-






A Cosmologia Egípcia, por sua vez, tinha finalidades essencialmente práticas. Os egípcios perceberam  que as cheias do Rio Nilo, essenciais para a agricultura e para sua sobrevivência, coincidiam com  o aparecimento da estrela Sírius. Nesse sentido, suas observações astronômicas tinham um caráter prático, na medida em que, com o surgimento dessa estrela no horizonte, havia chegado o tempo da plantação. As pirâmides eram alinhadas perfeitamente com esse momento, servindo como um observatório astronômico, que assinalava esse fenômeno,  essencial para a agricultura egípcia.









2.3 COSMOLOGIA DOS POVOS TUPI-GUARANI
Para o desenvolvimento desse tema, recorri ao excelente texto da Revista Scientific American Brasil, Especial EtnoAstronomia, escrito pelo pesquisador e astrônomo brasileiro Professor Germano Bruno Afonso, que foi professor da Universidade Federal do Paraná.

   46 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL ESPECIAL ETNOASTRONOMIA
   Com astronomia própria, índios brasileiros definiam o tempo de colheita, a contagem de dias, meses
e anos, a duração das marés, a chegada das chuvas. Desenhavam no céu histórias de mitos, lendas
e seus códigos morais, fazendo do firmamento esteio de seu cotidiano

   Por Germano Afonso

   A observação do céu sempre esteve na base do conhecimento de todas as sociedades do passado, submetidas em conjunto ao desdobramento cíclico de fenômenos como o dia e a noite, as fases da Lua e as estações do ano. Os indígenas há muito perceberam que as atividades de caça, pesca, coleta e lavoura estão sujeitas a flutuações sazonais e procuraram desvendar os fascinantes mecanismos que regem esses processos cósmicos, para utilizá-los em favor da sobrevivência da comunidade.
Diferentes entre si, os grupos indígenas tiveram em comum a necessidade de sistematizar o acesso a um rico e variado ecossistema de que sempre se consideraram parte. Mas não bastava saber onde e como obter alimentos. Era preciso definir também a época apropriada para cada uma das atividades de subsistência. Esse calendário era obtido pela leitura do céu. Há registros escritos sobre sua ligação com os astros desde a chegada dos europeus ao Brasil, mas é possível que se utilizassem desse conhecimento desde que deixaram de ser nômades.
É evidente, no entanto, que nem todos os grupos indígenas, mesmo de uma única etnia, atribuem idêntico significado a um determinado fenômeno astronômico específico, e a razão disso está no fato de cada grupo ter sua própria estratégia de sobrevivência. Além disso, considerando que não dependem, de maneira uniforme, de suas moradias, caça, pesca ou de trabalhos agrícolas, as constelações sazonais, por exemplo, oferecem aos distintos povos uma enorme diversidade de interpretação.
   Para acessar essa cosmologia é preciso considerar, entre outros pontos, a localização física e geográfica de cada grupo, como os que habitam o litoral e o interior, ou diferentes latitudes. Junto à linha do equador, por exemplo, não há muito sentido em referir-se às estações do ano em função de variação da temperatura local. Além de reduzidas, nem sempre essas oscilações refletem o que se pode caracterizar como verão ou inverno. O clima da região tropical é caracterizado, fundamentalmente, em função da maior ou menor abundância de chuvas.

   Separados mas Iguais
   DURANTE NOSSAS PESQUISAS em etnoastronomia tupi-guarani, tivemos diálogos informais e realizamos observações do céu com pajés de todas as regiões brasileiras. Além disso, utilizamos documentos históricos que relatam diversos mitos, constelações e a importância da astronomia no cotidiano das famílias indígenas.
   Das várias famílias do tronco lingüístico tupi, a tupi-guarani é a mais extensa em número e na distribuição geográfica de suas línguas, que são várias, do mesmo tronco. São encontrados grupos tupis-guaranis em todas as partes do Brasil, bem como na Guiana Francesa, Argentina, Paraguai, Bolívia e Peru.
   O que nos incentivou a realizar este trabalho de resgate da astronomia tupi-guarani foi perceber, em 1991, que o sistema astronômico dos tupinambás do Maranhão de 1612 é muito semelhante ao utilizado, atualmente, pelos guaranis do sul do Brasil, embora separados pelas línguas (tupi e guarani), pelo espaço (mais de 3 mil km, em linha reta) e pelo tempo (quase 400 anos).
   As observações do céu que realizamos com os indígenas permitiram localizar a maioria das constelações tupinambá e de diversas outras etnias da família tupi-guarani. Verificamos que etnias diferentes – distintas culturalmente, como seria de esperar – possuem um conjunto muito semelhante de conhecimentos astronômicos, utilizados para materializar tanto o calendário como os sistemas de orientação. Esse conjunto comum se refere, principalmente, ao Sol, Lua, Vênus, Via Láctea, e às constelações do Cruzeiro do Sul, Plêiades e das regiões do céu onde se situam Órion e Escorpião, constelações ocidentais que surgem, respectivamente no verão e no inverno, no Hemisfério Sul.
Além disso, algumas das constelações dos tupis-guaranis, utilizadas no cotidiano, são as mesmas de outros índios da América do Sul e dos aborígines australianos. É o caso da “Ema” e do “Homem Velho”, que também foram relatadas pelo capuchinho francês Claude d’Abbeville. Em 1612, o missionário passou quatro meses entre os tupinambás do Maranhão, perto da linha do equador. Seu livro “Histoire de la mission de pères capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisines”, publicado em Paris em 1614, é considerado uma das mais importantes fontes da etnografia dos tupis. Ele registrou o nome de cerca de 30 estrelas e constelações conhecidas pelos índios da ilha. Infelizmente, identificou apenas algumas delas. 



   GNOMON, O RELÓGIO SOLAR VERTICAL, indica o início de cada estação do ano. O calendário guarani divide-se em tempo novo (primavera e verão) e velho (outono e inverno).

   Astronomia e Biodiversidade
   OS INDÍGENAS SÃO profundos conhecedores do seu ambiente, plantas e animais, nomeando as várias espécies. Os tupis-guaranis, por exemplo, associam as estações do ano e as fases da Lua com o clima, a fauna e a flora da região em que vivem. Para eles, cada elemento da Natureza tem um espírito protetor. As ervas medicinais são preparadas obedecendo a um calendário anual bem rigoroso.
Em 1758, na 10ª edição de seu livro Systema naturae, o botânico e médico sueco Karl von Linné (1707-1778) classificou todos os seres vivos até então conhecidos com as noções de gênero e espécie. Ele incluiu 39 espécies (14 mamíferos, 15 aves, 2 répteis e 8 peixes) das 1.370 catalogadas pelo astrônomo alemão Georg Marcgrave (1610 -1644), considerado o primeiro naturalista a estudar a fauna brasileira. Linné considerou os índios guaranis como “primus verus systematicus”, dando, assim, o devido crédito à contribuição intelectual dessa etnia à ciência da sistemática ou taxonomia, por cuja criação ele é internacionalmente reconhecido.
   Os tupis-guaranis, em virtude da longa prática de observação da Lua, conhecem e utilizam suas fases na caça, no plantio e no corte da madeira. Eles consideram que a melhor época para essas atividades é entre a lua cheia e a lua nova (lua minguante), pois entre a lua nova e a lua cheia (lua crescente) os animais se tornam mais agitados devido ao aumento de luminosidade. Certa noite de lua crescente estava observando as constelações com os guaranis na ilha da Cotinga, Paraná. De repente, um deles me disse que seria melhor observarmos quando não houvesse Lua. Rapidamente, com meu conhecimento ocidental, respondi que estava de acordo, pois o brilho da Lua ofuscava o brilho das estrelas, embora conseguíssemos enxergar bem a Via Láctea. Ao que ele retrucou dizendo que, na realidade, o que o incomodava era a quantidade de mosquitos, muito menor quando não há Lua. Nunca havia percebido essa relação, que de fato existe, entre as fases da lua e a incidência de mosquitos.
   Os guaranis que atualmente habitam o litoral também conhecem a relação das fases da Lua com as marés. Além disso, associam a Lua e as marés às estações do ano (observação dos astros e dos ventos) para a pesca artesanal. Segundo eles, o camarão é mais pescado entre fevereiro e abril, na maré alta de lua cheia, enquanto a época do linguado é no inverno, nas marés de quadratura (lua crescente e lua minguante). Em geral, quando saem para pescar, seja no rio ou no mar, os guaranis já sabem quais as espécies de peixe mais abundantes, em função da época do ano e da fase da Lua.
   Até o ritual do “batismo” (nimongarai ou nheemongarai, em guarani), em que as crianças recebem seu nome, depende de um calendário lunissolar e da orientação espacial: o plantio principal do milho (avaxi) ocorre, geralmente, na primeira lua minguante de agosto. Após a colheita do milho plantado nessa época é que realizam o batismo das crianças. Esse evento deve coincidir com a época dos “tempos novos”, caracterizada pelos fortes temporais de verão, geralmente o mês de janeiro. O nome dado à criança guarani vem de uma das cinco regiões celestes: zênite, norte, sul, leste e oeste. Cada região possui nomes típicos, representando a origem das crianças.
   A astronomia envolveu todos os aspectos da cultura indígena. O caráter prático dos seus conhecimentos pode ser reconhecido na organização social e em condutas cotidianas que eram orientadas por rituais cujas datas eram definidas pela posição dos astros.
   A comunidade científica conhece muito pouco da astronomia indígena e da sua relação com o ambiente, patrimônio que pode ser perdido em uma ou duas gerações pelo rápido processo de globalização, que tende a homogeneizar as culturas e assim perder as nuances da diversidade. Esse risco ocorre, também, pela falta de pesquisa de campo e pelas dificuldades em documentar, avaliar, validar, proteger e disseminar os conhecimentos astronômicos dos indígenas do Brasil. Atualmente, há um grande interesse internacional na proteção e conservação do conhecimento tradicional e de práticas ancestrais de indígenas e das comunidades locais, para a conservação da biodiversidade.

   O Sol e os Pontos Cardeais
   PARA OS TUPIS-GUARANIS o Sol é o principal regulador da vida na Terra e tem grande significado religioso. Todo o cotidiano deles está voltado para a busca da força espiritual do Sol. Os guaranis, por exemplo, nomeiam o Sol de Kuaray, na linguagem do cotidiano e de Nhamandu, na espiritual.
Os tupis-guaranis determinam o meio-dia solar, os pontos cardeais e as estações do ano utilizando o relógio solar vertical, ou gnômon, que na língua tupi antiga, por exemplo, chamava-se cuaracyraangaba. Ele é constituído de uma haste cravada verticalmente em um terreno horizontal, da qual se observa a sombra projetada pelo Sol. Essa haste vertical aponta para o ponto mais alto do céu, chamado zênite. O relógio solar vertical foi utilizado também no Egito, China, Grécia e em diversas outras partes do mundo.
   Na cosmogênese guarani, Nhanderu (Nosso Pai) criou quatro deuses principais que o ajudaram na criação da Terra e de seus habitantes. O zênite representa Nhanderu e os quatro pontos cardeais representam esses deuses. O norte é Jakaira, deus da neblina vivificante e das brumas que abrandam o calor, origem dos bons ventos. O leste é Karai, deus do fogo e do ruído do crepitar das chamas sagradas. No sul, Nhamandu, deus do Sol e das palavras, representa a origem do tempo-espaço primordial. No oeste, Tupã é deus das águas, do mar e de suas extensões, das chuvas, dos relâmpagos e dos trovões.
O calendário guarani está ligado à trajetória aparente anual do Sol e é dividido em tempo novo e tempo velho (ara pyau e ara ymã, respectivamente, em guarani). Ara pyau é o período de primavera e verão, sendo ara ymã o período de outono e inverno.
   O dia do início de cada estação do ano é obtido através da observação do nascer ou do pôr-do-sol, sempre de um mesmo lugar, por exemplo, da haste vertical. O Sol sempre nasce do lado leste e se põe do lado oeste. No entanto, somente nos dias do início da primavera e do outono, o Sol nasce exatamente no ponto cardeal leste e se põe exatamente no ponto cardeal oeste. Para um observador no Hemisfério Sul, em relação à linha leste-oeste, o nascer e o pôr-do-sol ocorrem um pouco mais para o norte no inverno e um pouco mais para o sul no verão. Utilizando rochas, por exemplo, para marcar essas direções, os tupis-guaranis materializavam os quatro pontos cardeais e as direções do nascer e do pôr-do-sol no início das estações do ano.

   Lua e as Marés
   PARA OS TUPIS-GUARANIS, a Lua (Jaxi, em guarani), principal regente da vida marinha, é considerada do sexo masculino, o irmão mais novo do Sol. A primeira unidade de tempo utilizada pelos tupis-guaranis foi o dia, medido por dois nasceres consecutivos do sol. Depois veio o mês (também chamado jaxi), determinado a partir de duas aparições consecutivas de uma mesma fase da Lua. Os tupis-guaranis consideravam essa fase como o primeiro filete da Lua que aparecia do lado oeste, ao anoitecer, depois do dia da lua nova (jaxy pyau), dia em que a Lua não é visível por se encontrar muito próxima da direção do Sol.
   Além de serem utilizadas como calendário mensal, as fases da Lua serviam para orientação geográfica, pois a Lua brilha por refletir a luz do Sol, ficando a sua parte iluminada no lado em que se encontra o Sol. Entre a lua nova e a lua cheia (jaxy guaxu) o hemisfério iluminado aponta para o lado oeste, enquanto entre a lua cheia e a lua nova, a indicação é do lado leste. As fases da Lua também permitiam obter as horas da noite: o primeiro filete, depois da lua nova, aparece ao anoitecer, do lado oeste, e desaparece minutos depois; a lua crescente (jaxy endy mbyte) aparece desde o anoitecer até meia-noite; a lua cheia, do pôr-do-sol ao nascer do sol e a lua minguante (jaxy nhenpytu mbyte) fica visível da meia-noite ao amanhecer.
   Segundo d’Abbeville, “os tupinambás atribuem à Lua o fluxo e o refluxo do mar e distinguem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na lua nova ou poucos dias depois”. Assim, mesmo antes dos europeus, os tupinambás já sabiam que perto dos dias de lua nova e de lua cheia as marés altas são mais altas e as marés baixas são mais reduzidas do que nos outros dias do mês. O conhecimento da periodicidade das marés antes dos europeus pode ser explicado em virtude de a relação entre as marés e as fases da Lua ser melhor observada entre os trópicos, região em que se localiza a maior parte do Brasil.

   Eclipses e o Fim do Cosmos
   OS ECLIPSES SEMPRE espalharam terror por transformarem em caos a ordem de repetição do Cosmos, de eterno retorno. Aparentemente, diversos povos antigos podiam prever esses fenômenos. Mas, por falta de registros, não conhecemos os métodos por eles utilizados. Os tupis-guaranis também observavam os movimentos do Sol e da Lua e se preocupavam em prever os eclipses. Um dos mitos tupis-guaranis sobre o fenômeno relata que a onça (xivi, em guarani) sempre persegue os irmãos Sol 
e Lua. Na ocasião do eclipse solar (kuaray onheama) ou do lunar (jaxy onheama), os indígenas fazem a maior algazarra, com o objetivo de espantar a Onça Celeste, pois acreditam que o fim do mundo ocorrerá quando ela devorar a Lua, o Sol e os outros astros, fazendo com que a Terra caia na mais completa escuridão.
   No céu, a cabeça da onça desse mito indígena é representada pela estrela vermelha Antares, da constelação zodiacal do Escorpião, e pela estrela Aldebaran, também vermelha, da constelação zodiacal do Touro. Essas duas constelações ficam no zodíaco onde, observados da Terra, passam o Sol, os planetas e a Lua. Assim, de fato, pelo menos uma noite por mês e um dia por ano, a Lua e o Sol, respectivamente, aproximam-se de Antares e de Aldebaran.
   Os antigos astrônomos não sabiam que era a Terra que orbitava em torno do Sol (movimento de translação). Ao nascer e ao pôr-do-sol, observavam que a posição do Sol mudava, dia a dia, em relação às estrelas fixas, em um movimento cíclico de um ano. Perceberam que os eclipses solares e lunares ocorriam apenas quando a Lua estava próxima a essa trajetória do Sol entre as estrelas, no céu. Devido a essa relação com os eclipses, denominaram essa trajetória aparente do Sol de eclíptica. O mito sobre os eclipses demonstra o grande conhecimento empírico de astronomia dos tupis-guaranis.

As Crateras Lunares
LUA, IRMÃO DO SOL, entrava tateando no escuro, no quarto da irmã de seu pai, com a intenção de fazer amor com ela. Para saber quem a importunava todas as noites, sua tia lambuzou os dedos com resina e de noite, enquanto Lua a procurava, passou a mão em sua face.
No dia seguinte, bem cedo, Lua foi lavar a face para retirar a resina. No entanto, a substância não saiu, e ele ficou mais sujo ainda. Por esse motivo, Lua tem sempre a face manchada.
Desde então, a lua nova lava seu rosto, fazendo chover para tentar tirar as manchas de resina, que ficam mais visíveis quando ela se torna cheia. Essa fábula ensina aos tupis-guaranis que não devem cometer incesto.

   A Mulher da Lua
   O PLANETA VÊNUS era muito observado pelos tupis-guaranis por ser, depois do Sol e da Lua, o objeto mais brilhante do céu. Vênus era utilizado principalmente para orientação, por ser visto pouco antes do nascer ou logo após o pôr-do-sol, sempre próximo ao Sol. Os indígenas pensavam que se tratava de duas estrelas que apareciam em períodos diferentes: a estrela matutina (kaaru mbija), que chamamos de estrela d’alva, e a vespertina (ko’e mbija), que chamamos de Vésper, cada uma delas visível por cerca de 263 dias.
   Os tupis-guaranis chamam o planeta Vênus, quando aparece como estrela vespertina, de “Mulher da Lua”. Eles contam que a mulher da Lua é muito linda, vaidosa e nunca envelhece. Ela só fica ao lado do seu marido enquanto ele é jovem, afastando-se dele à medida que fica mais velho.
   Ao anoitecer, no dia seguinte à lua nova, os dois astros se encontram bem próximos, no lado oeste. Nas noites seguintes, a Lua vai crescendo e se distanciando de Vênus. Na crescente, Vênus continua aproximadamente no mesmo lugar, mas a Lua se encontra no alto do céu, perto da linha norte-sul. Na lua cheia, ao anoitecer, a Lua está no lado leste e sua mulher, bem afastada, no lado oeste. Na lua minguante, Vênus e a Lua não são mais visíveis ao mesmo tempo. Na lua nova, o ciclo recomeça.
Esse mito, que pode ser considerado uma maneira alternativa de explicar as fases da Lua, nos foi relatado pelos guaranis do sul do Brasil e pelos tembés do norte do país, duas etnias da família tupi-guarani que não têm contato entre si.

   Constelações na Via Láctea
   AS CONSTELAÇÕES formam figuras imaginárias, criadas há mais de 6 mil anos para reunir grupos de estrelas (jaxy tatá), aparentemente próximas, visíveis a olho nu, tendo em vista que nomear cada uma delas era uma tarefa difícil. A maioria dos povos antigos observava as constelações ao anoitecer e as utilizavam como calendário e orientação. Cada cultura tinha as suas próprias constelações. As constelações dos tupis-guaranis diferem das concepções das sociedades exteriores ocidentais principalmente em três aspectos.
   Primeiro, as principais constelações ocidentais registradas pelos povos antigos são aquelas que interceptam o caminho imaginário que chamamos de eclíptica, por onde aparentemente passa o Sol, e próximo do qual encontramos a Lua e os planetas. Essas constelações são chamadas zodiacais. As principais constelações indígenas estão localizadas na Via Láctea (Tapi’i Rape), a faixa esbranquiçada que atravessa o céu, onde as estrelas e as nebulosas aparecem em maior quantidade, facilmente visível à noite. A Via Láctea é conhecida como Caminho da Anta ou como a Morada dos Deuses pela maioria das etnias dos tupis-guaranis.
   Os desenhos das constelações ocidentais são feitos pela união de estrelas. Mas, para os tupis-guaranis, as constelações são constituídas pela união de estrelas e, também, pelas manchas claras e escuras da Via Láctea, sendo mais fáceis de imaginar. Muitas vezes, apenas as manchas claras ou escuras, sem estrelas, formam uma constelação. Os guaranis chamam a Grande Nuvem de Magalhães de Bebedouro da Anta (Tapi’i Huguá) e a Pequena Nuvem de Magalhães de Bebedouro do Porco-do-Mato (Coxi Huguá).
O terceiro aspecto que diferencia as constelações tupis-guaranis das ocidentais está relacionado ao número delas conhecido pelos indígenas. A União Astronômica Internacional (UAI) utiliza um total de 88 constelações, distribuídas nos dois hemisférios terrestres, enquanto certos grupos indígenas já nos mostraram mais de cem constelações, vistas de sua região de observação. Quando indagados sobre quantas constelações existem, os pajés dizem que tudo que existe no céu existe também na Terra, que nada mais seria do que uma cópia imperfeita do céu. Assim, cada animal terrestre tem seu correspondente celeste, em forma de constelação.

   A Hora pelo Cruzeiro do Sul
   O CRUZEIRO DO SUL (Curuxu) fica em plena Via Láctea, sendo a constelação mais conhecida dos habitantes do Hemisfério Sul. Ela é formada, em sua parte principal, por cinco estrelas, quatro delas representando uma cruz, e uma quinta fora do braço da cruz. Essas estrelas, pela ordem de brilho, são conhecidas, popularmente, como Magalhães, Mimosa, Rubídea, Pálida e Intrometida. Magalhães (a mais brilhante) e Rubídea (avermelhada) formam o braço maior da cruz; Mimosa e Pálida compõem o menor. A Intrometida (a mais apagada) não consta da representação dessa constelação pelos tupis-guaranis.
   O Cruzeiro do Sul está próximo do Pólo Sul Celeste (PSC), prolongamento do eixo de rotação da Terra no nosso céu, parecendo girar em torno dele de leste para oeste, devido ao movimento de rotação da Terra de oeste para leste. Assim, dependendo do dia e da hora, a cruz pode estar de cabeça para baixo, deitada, inclinada ou em pé, sempre fazendo uma circunferência em torno do Pólo Sul Celeste.
   A posição da constelação do Cruzeiro do Sul é utilizada pelos tupis-guaranis para determinar os pontos cardeais, o intervalo de tempo transcorrido durante a noite e as estações do ano. Quando a cruz se encontra em pé, o prolongamento do seu braço maior aponta para o ponto cardeal sul. Olhando para o sul, às nossas costas temos o norte, à direita o oeste e à esquerda, o leste.
   Tendo em vista que o Cruzeiro do Sul efetua uma volta completa em cerca de 24 horas, o tempo gasto, por exemplo, para ir da posição deitada até a posição em pé é de seis horas. Assim, podemos determinar o intervalo de tempo transcorrido em uma noite observando duas posições do Cruzeiro do Sul.
   O início de cada estação do ano é determinado pelos tupis-guaranis considerando a posição da cruz ao anoitecer: no outono ela fica deitada do lado esquerdo do sul, isto é, para leste; no inverno, fica em pé apontando para o sul; na primavera, ela se encontra deitada para o lado oeste e no verão de cabeça para baixo, abaixo da linha do horizonte, sendo visível somente após a meia-noite.

   As Plêiades e a Chuva
   AS PLÊIADES (Eixu, em guarani) são um aglomerado de estrelas jovens, azuis, que se localizam na constelação ocidental do Touro. A olho nu, longe da iluminação artificial e sem Lua, podemos ver, normalmente, sete dessas estrelas e, por isso, as Plêiades são conhecidas, também, como as sete estrelas ou as sete irmãs. Muitas etnias indígenas utilizavam as Plêiades para construir seu calendário. Eles consideravam principalmente os dias do nascer helíaco, do nascer anti-helíaco e do ocaso helíaco das Plêiades.
   Cerca de um mês por ano, as Plêiades não são visíveis porque ficam muito próximas da direção do Sol. O nascer helíaco das Plêiades ocorre perto do dia 5 de junho, o primeiro dia em que elas se tornam visíveis de novo, perto do horizonte, no lado leste, antes do nascer do sol. Esse dia marcava o início do ano. Por volta do dia 10 de novembro, as Plêiades nascem logo após o pôr-do-sol. Este dia recebe o nome de nascer anti-helíaco das Plêiades, pois o Sol se encontra no lado oeste e as Plêiades no lado leste. Perto de 1o de maio, acontece o ocaso helíaco das Plêiades, pois elas desaparecem do lado oeste, logo após o pôr-do-sol. Depois desse dia, elas não são mais visíveis à noite, até perto do dia 5 de junho quando ocorre, novamente, seu nascer helíaco. Pode-se admitir, então, um ano sideral, baseado no nascer helíaco das Plêiades.
   Os tupinambás conheciam muito bem o aglomerado estelar das Plêiades e o denominavam “Seichu”. Quando elas apareciam, afirmavam que as chuvas iam chegar, como chegavam, efetivamente, poucos dias depois. Como a constelação aparecia alguns dias antes das chuvas e desaparecia no fim para tornar a reaparecer em igual época, eles reconheciam perfeitamente o intervalo de tempo decorrido de um ano a outro. Da mesma maneira, atualmente para os tembés, que habitam o norte do Brasil, o nascer helíaco das Plêiades anuncia a estação da chuva e o seu ocaso helíaco aponta a estação da seca. Para os guaranis do sul do país, o nascer helíaco das Plêiades anuncia o inverno, enquanto o ocaso
   A constelação da Ema (Rhea americana alba) se localiza numa região do céu limitada pelo Cruzeiro do Sul e Escorpião. Sua cabeça é formada pelo Saco de Carvão, nebulosa escura que fica próxima à estrela Magalhães. A Ema tenta devorar dois ovos de pássaro que ficam perto de seu bico, representados pelas estrelas alfa Muscae e beta Muscae.
   As estrelas alfa Centauro e beta Centauro estão dentro do pescoço da Ema. Elas representam dois ovos grandes que a Ema acabou de engolir. Uma das pernas da Ema é formada pelas estrelas da cauda de Escorpião. As manchas claras e escuras da Via Láctea ajudam a visualizar a plumagem da Ema.
Conta o mito guarani que a constelação do Cruzeiro do Sul segura a cabeça da Ema. Caso ela se solte, beberá toda a água da Terra e morreremos de seca e sede.

   
   A ETNOASTRONOMIA INVESTIGA o conhecimento astronômico dos povos antigos, através de vestígios arqueológicos, documentos históricos, registros etnográficos e relatos de tradições orais. É uma atividade transdisciplinar envolvendo, principalmente, pesquisadores das áreas de astronomia e antropologia. A etnoastronomia tem um grande potencial no Brasil, reflexo da amplitude e diversidade étnicas nacionais.
   Com freqüência considera-se a cosmologia de outras civilizações através de nossos próprios conhecimentos, desenvolvidos predominantemente dentro de um sistema educacional ocidental. Mas esse conhecimento depende de documentos escritos, regras, regulamentos e infra-estrutura tecnológica. A visão indígena do Universo deve ser considerada no contexto dos seus valores culturais e conhecimentos ambientais, que se referem às praticas e representações mantidas e desenvolvidas por povos com longo tempo de interação com o ambiente em que vivem. O conjunto de entendimentos, interpretações e significados faz parte de uma complexidade cultural que envolve linguagem, sistemas de nomes e classificação, maneiras de usar recursos naturais, rituais, espiritualidade e interpretações do mundo. O conhecimento indígena não-formal, em contraste com o conhecimento formal, é transmitido oralmente de geração a geração, através de mitos, músicas e rezas, sendo raramente documentado.
   Para pesquisar e divulgar o conhecimento astronômico empírico dos índios brasileiros, construímos (Germano Afonso) um planetário itinerante, financiado pela Fundação Vitae de São Paulo. Ele permite localizar as principais constelações, em diferentes horários e em diferentes épocas do ano, independentemente das condições atmosféricas. Esse planetário é muito importante para atingirmos um dos principais objetivos da nossa pesquisa: realizar um inventário das constelações indígenas. Ele é utilizado principalmente em cursos para professores de escolas indígenas e de ensino básico. Pretendemos levar esse planetário para o maior número de aldeias espalhadas pelo Brasil, para possibilitar o acesso aos saberes astronômicos mantidos através da tradição oral dos sábios de diferentes comunidades indígenas.

   PLANETÁRIO INDÍGENAhelíaco indica a proximidade do verão.
   É interessante observar que culturas diferentes, habitando regiões distintas e vivendo épocas desencontradas, utilizavam as Plêiades como calendário, mesmo considerando que seu nascer helíaco, nascer anti-helíaco e ocaso helíaco não correspondessem exatamente ao início das estações do ano. Pensamos que, além de sua beleza, outro motivo contribui para essa escolha: as Plêiades estão situadas a cerca de 4 graus da eclíptica. Por isso, alguns de seus componentes são freqüentemente ocultos pela Lua e ocasionalmente pelos planetas do nosso Sistema Solar. Essas ocultações oferecem um belo espetáculo da Natureza, sendo observadas mesmo a olho nu.

   A Constelação da Ema
   NA SEGUNDA quinzena de junho, quando a Ema (Guyra Nhandu) surge em sua totalidade ao anoitecer, no lado leste, indica o início do inverno para os índios do sul do Brasil e o início da estação seca para os do norte. trata-se do início do verão para os índios do sul e o início da estação chuvosa para os do norte.
   A constelação do “Homem Velho” é formada pelas constelações ocidentais do Touro e de Órion. A cabeça do Homem Velho é formada pelas estrelas do aglomerado estelar Híades, em cuja direção se encontra Aldebaran, a estrela mais brilhante da constelação do Touro, de cor avermelhada. Acima da cabeça do Homem Velho fica o aglomerado estelar das Plêiades, um penacho que ele tem amarrado à cabeça.
   A estrela Bellatrix fica na virilha do Homem Velho, e a estrela vermelha Beltegeuse representa o lugar em que sua perna foi cortada. O Cinturão de Órion (Três Marias) formado pelas estrelas Mintaka, Alnilam e Alnitak, representa o joelho da perna sadia. A estrela Saiph representa o pé da perna sadia. O braço esquerdo do Homem Velho é constituído por estrelas do escudo de Órion. Na sua mão direita ele segura um bastão para se equilibrar.

   PARA CONHECER MAIS
   Etnoastronomia dal Brasile. Germano Afonso. Le Stelle, no 19, págs. 84 a 86, 2004.
   Ayvu rapita: textos míticos de los mbyá-guarani del Guairá. Leon Cadogan. Biblioteca Paraguaya de Antropologia, 1992.
   Histoire de la mission des pères capucins en l'isle de Marignan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables & des moeurs merveilleuses des indiens habitans de ce pais. Claude Abbeville. Microfilm Reprod. de l'éd. de Paris. Bibliothèque Nationale de France, 1995. (www.gallica.bnf.fr)
   Systema naturae – regnum animale. Caroli Linnaei. British Museum, 1956.
Conta o mito guarani que essa constelação representa um homem casado com uma mulher muito mais jovem do que ele. Sua esposa ficou interessada no irmão mais novo do marido e, para ficar com o cunhado, matou o marido, cortando-lhe a perna na altura do joelho direito. Os deuses ficaram com pena do marido e o transformaram em uma constelação.
   Itacoatiara de Ingá
   PODE-SE DIZER que existem dois tipos principais de constelação indígena: uma relacionada ao clima, à fauna e à flora do lugar, conhecida pela maioria da comunidade e que regula o cotidiano da aldeia; a outra está relacionada aos espíritos indígenas, sendo conhecida, em geral, apenas pelos pajés e é mais difícil de visualizar. Os guaranis, por exemplo, chamam de Nhanderu a mancha escura que aparece perto da constelação ocidental do Cisne. O Deus Maior Guarani aparece sentado em seu banco sagrado, utilizando seu cocar divino e segurando o Sol e a Lua em suas mãos. Ele anuncia a primavera.
   Às margens do rio Ingá, na Paraíba, existe um monólito de rocha gnaisse, duríssima, cuja superfície está recoberta por cerca de 500 inscrições de baixo-relevo, que muitos pesquisadores afirmam serem únicas no mundo, Trata-se da famosa Itacoatiara de Ingá, com cerca de 23 m de largura e 3 m de altura. Há várias hipóteses sobre a origem dos grafismos. A nossa é de que Itacoatiara de Ingá serviu de local para rituais religiosos relacionados a elementos astronômicos. Identificamos ali alguns espíritos da mitologia tupi-guarani, e supomos que o painel indica parte da Vila Láctea. Diversos pajés reconheceram alguns dos espíritos nas gravuras, puderam nomeá-los e localizá-los no céu.

   Germano Afonso é coordenador do projeto Planetário-Observatório Indígena Itinerante da Universidade Federal do Paraná. Doutor em astronomia pela Universidade de Paris VI, pesquisa forças não-gravitacionais em asteróides e satélites artificiais. Ganhou, em 1991, o prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia e, em 2000, o prêmio Jabuti, na categoria melhor livro didático, com a equipe do Planetário do Pará/ UEPA, com o livro O céu dos índios tembé.


          COMENTÁRIO: A primeira noção que fundamenta o conhecimento é a noção de ORDEM. Se tudo é caótico, se tudo muda incessantemente, nada poderia ser conhecido. O conhecimento pressupõe uma realidade minimamente estruturada; ou, então, que as mudanças sejam ordenadas, que possam ser compreendidas como etapas de um ciclo. Ora, para os povos antigos, a ordem celeste era a maior expressão de ordem e harmonia disponível. A partir dessa realidade, o pensamento procura construir esquemas mentais que codifiquem essa ordem em histórias, em mitos e posteriormente em conceitos. Ao assim agir, a realidade se torna compreensível, a vida humana se faz mais fácil e mais previsível. Os primeiros esquemas de compreensão do mundo apresentam uma realidade cíclica e repetitiva, na qual o ser humano precisa e deve se inserir.


 

    

                                            A imagem acima representa, na cosmologia indígena, a Constelação
                                            da Ema. As mesmas estrelas, vistas de pontos diferentes, são repre-
                                            sentadas de forma diferentes. A Ema é um animal com o qual os in-
                                            dígenas brasileiros convivem, da mesma forma que os povos        do
                                            Hemisfério Norte tem a Constelação da Ursa Maior, animal         que
                                            não existe no Hemisfério Sul. No texto acima, é comentado a respei-
                                            to da importância dessa Constelação no calendário indígena.



   COMENTÁRIOS GERAIS A RESPEITO DE COSMOLOGIAS E MITOLOGEMAS

                O céu é símbolo de transcendência. Onde está o céu, aí está Deus. Por ser imenso, o céu é o local adequado para a Divindade. Deus é o Altíssimo, o Superior, o Inatingível. O céu deve ter sido o fenômeno natural que mais impressionou o homem primitivo, pela sua importância e pelos fenômenos que ali aconteciam, como a chuva, o calor, as nuvens, os astros, a lua, as tempestades. Em culturas agrárias, o céu é o “grande macho”, o “touro celeste”, enquanto a Terra é a “grande mãe”. O Sol, por sua vez, é símbolo de soberania, de onde provém a filiação dos soberanos. Como fenômeno de esplendor e regularidade, é visto como expressão da ordem, atributo que os soberanos costumam reivindicar para si. O Sol diariamente se retira, o que não é visto como morte, mas como uma visita aos mundos inferiores, ao reino dos mortos. No entanto, ele diariamente renasce, o que explica sua ligação com os cultos de iniciação que garantem a ressurreição gloriosa, como o Mito de Osíris. Jesus Cristo, posteriormente, também foi assimilado à essa imagem, pois a data de seu nascimento foi atribuída ao dia 25 de Dezembro, dia do Sol Invicto, na tradição da religião romana.

            O Sol também aparece ligado ao mito do herói, do fundador, do líder, pois que ele que impõe no Cosmos, vencendo as trevas e marcando os dias. O Sol é um mitologema das elites.

            A Lua está intimamente ligada à medida do tempo. Se o Sol é o mesmo a cada dia, a Lua apresenta fases distintas, que marcam o suceder das estações, influindo no processo rítmico da natureza e da vida humana. Também está intimamente associada aos ritmos da mulher e à ressurreição, visto que, além de crescer e diminuir, fica por três dias sepultada e depois reaparece. A Lua também está associada ao ritmo das águas e também à fertilidade, aparecendo nas imagens antigas em que os cornos do touro apresentam a sua forma. A Lua está associada à mulher, por causa dos ritmos que apresenta, e ambas estão ligadas à serpente, que também troca de pele e se renova. A Terra, por sua vez, está vinculada à maternidade, pois o homem primitivo se sente seu filho, havendo tribos onde o parto deve acontecer na terra nua. Da mesma forma, ao morrer o homem deve ser a ela devolvido, sendo comum o enterro em posição fetal. Também costuma ser entendida como esposa do Céu.

            As águas, ao fecundarem a terra, se revestem de um atributo masculino, razão pela qual muitos mitos cosmogônicos atribuem o início da vida a um mar infinito, de onde ela proveio. Esse oceano também é visto como o caos. Por essa razão, há os ritos de batismo, em que as pessoas, mergulhadas na água, adquirem uma nova vida. (Fonte: PIAZZA, Waldomiro O. Introdução à Fenomenologia Religiosa. Petrópolis, Editora Vozes, 1976).

                DO COSMOS EXISTENCIAL AO COSMOS LÓGICO

                O mito é o primeiro conhecimento que o ser humano tem do mundo, pois a consciência humana, desde sempre, se colocou como a estrutura do universo. As plantas, o animal, aderem ao mundo; o pensamento, mesmo rudimentar, dele se descola e se torna um instrumento humano de intervenção e mudança. Ao mesmo tempo, atribui um sentido às coisas. As estruturas míticas exprimem valores, ainda que ligadas basicamente aos impulsos e necessidades biológicas. Antes de serem formulados, os mitos são vividos e sentidos, inscrevendo toda a realidade numa totalidade significativa. (Pag. 28)

                Os mitos tornam possível a vida humana, atribuindo significado às coisas e formulando regras de conduta. É um pensamento encarnado, não desprendido do real, concreto, relacionado a um contexto existencial. O pensamento lógico, ao contrário, distancia o ser humano das coisas, tornando o mundo cada vez mais estranho e indiferente a nós. O Jesus do historiador está morto há mais de dois mil anos, mas o Jesus do fiel permanece a ele unido, através da mão que faz um sinal sagrado, o sinal da cruz. (Pag. 37). Em outras palavras, o mito não se situa na história, não se transforma no tempo. É um dado ontológico do real. Para o homem dos tempos míticos, agir é retomar, tornar a executar os atos originais. Nada se inventa, nada se cria; o mundo está completo, só é possível refazer o que já foi feito desde sempre. Ao realizar os ritos, o ser humano se investe de uma responsabilidade cósmica, participando e de certa forma sustentando a realidade, que poderia desaparecer sem esses ritos. (Pag. 43)

                Os mitos reduzem o acidental ao permanente. Sempre acontece a mesma coisa, ou seja, nada acontece. Tudo está justificado desde sempre. Os acontecimentos sempre referendam a estrutura mítica que os explica. Portanto, nada há para ser conhecido, muito menos para ser modificado. As tradições originais são uma espécie de capital inicial, que deve ser rigidamente preservado. (Pag. 50)

                O universo mítico não é um espaço neutro e indiferente, é uma realidade viva que participa dos acontecimentos e que tem uma significação moral e espiritual. O contato com esse universo é uma experiência viva, onde o humano se defronta com estruturas benevolentes ou hostis, mas nunca neutras. O espaço não é uma entidade geométrica homogênea, mas é um conjunto heterogêneo de lugares, e se identifica com o local onde se vive. É um espaço antropológico, lugar de uma existência real. (Pag. 66). A realidade geográfica não existe independentemente da vivência humana; o espaço é significativo, habitado pelos homens e mesmo pelos mortos, que o continuam frequentando. Nesse sentido, a vida humana é territorializada, não poderia se estender indefinidamente para regiões desconhecidas, das quais não se participa. Os deuses, os defuntos, os viventes, todos compartilham o mesmo espaço, não sendo possível ao ser humano dele se afastar; ser banido da comunidade significa morrer, porque não se pode viver onde não há mais significação. (Pag. 68). Mesmo nas religiões mais elaboradas, continua presente a ideia do “espaço sagrado”, na medida em que os cristãos e judeus desejam visitar Jerusalém,   os muçulmanos querem ir a Meca, os hinduístas pretendem  estar no Ganges. E, ainda, cada lar, no mundo grego e romano, se convertia em um espaço sagrado onde se faz o contato com os deuses.  As cidades e povoamentos também têm seus lugares sagrados, o marco zero de onde se desenvolveram; uma espécie de microcosmo e centro do mundo. O mundo é um sistema de símbolos que se refletem uns nos outros, os diferentes espaços são análogos e coordenados entre si. Não existe uma concepção do tempo e da história, mas do espaço e da imobilidade. As comunidades originais, ao se deslocarem, transportam consigo seu espaço simbólico, que será recriado em qualquer lugar que estejam. A tribo refaz seu acampamento e mantém o espaço de cada clã segundo a disposição original; o exército romano constrói seus alojamentos repetindo uma estrutura sagrada prévia. Ao se fixar em algum lugar, o ser humano o investe do sagrado, de certo modo recria o mundo segundo um modelo original, indefinidamente repetido. Nesse contexto, acontece uma enorme debilidade da noção de tempo, extremamente débil e sem elasticidade. Relatar uma história, para a criatura mítica, de certa forma exigiria que ele fisicamente se colocasse no local dos acontecimentos, novamente, sem se distanciar dele através de uma descrição. Não lhe é possível narrar um acontecimento e estar em local diferente dele; o tempo é o que se vive, o espaço é aquele no qual ele se encontra. (Pag. 79). Existe apenas um tempo, e um calendário cíclico que se repete indefinidamente, ou que poderia ser alterado na medida em que os deuses se manifestassem nesse sentido. O calendário. aqui,  não assinala fatos históricos, mas a sucessão das obrigações humanas em relação ao sagrado, as permissões e interdições, as festas e sacrifícios.  É o encadeamento dos ritos. Os acontecimentos previstos no calendário já se deram, retornam sem cessar sobre si mesmos.  (Pag. 83). Nada acontece de novo, nada se cria. A história humana não existe, ou é apenas um detalhe na grande história da totalidade. Trata-se de uma ontologia da repetição.

                A antropologia primitiva tem os mesmos caracteres de sua cosmologia. Não existindo, plenamente desenvolvida, a noção do “eu”, o mundo e o ser humano formam uma unidade, não de forma antropomórfica, mas segundo uma espécie de “cosmomorfismo”. (Pag. 97).

                “O primitivo não conhece a ruptura entre ontologia e realidade, este divórcio entre uma realidade profanada e um mundo de valores exilados no inteligível. Ele permanece ainda como o homem da conciliação e da reconciliação, o homem da plenitude. Não lhe é ainda necessário opor-se para se pôr, de lutar para obter de outros o reconhecimento. Seu universo não foi ainda desnaturado pela técnica, ele ainda não sonha em tornar-se cada vez mais senhor e possuidor da natureza. Ignora o progresso. É por isso que não conhece a instabilidade do homem moderno que perdeu o seu posto ontológico e o procura sem cessar. Ele se sente em seu lugar, no coração da realidade, não muito consciente de si mesmo para se querer uma outra coisa que ele não é. O moderno, privado do se ancoradouro transcendente, vai inventar a religião, a filosofia, a política, para recuperar a segurança perdida. E vai modificar os esforços para assegurar, de uma maneira ou outra, esta concordância entre a realidade e o valor que a humanidade tinha encontrado sem nenhuma dificuldade no mito. Mas, uma vez verificada a ruptura, esta não mais pode ser esquecida. É por isso que a vida primitiva, transfigurada pela amizade dos mitos, perdurará como um sonho de nostalgia para a imaginação dos poetas e dos sonhadores, o sonho da idade de ouro antes dos mal-entendidos, da paz antes de todas as guerras e da simples natureza antes da civilização e seus insolúveis problemas.” (Pag. 106) (BIBLIOGRAFIA:  GUSDORF, Georges. Mito e Metafísica. Tradução de Hugo di Prímio Paz. São Paulo, Editora Convívio, 1980.)

 

               

               

               

 

               

               

 

                


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